sexta-feira, 11 de junho de 2010

Vasco Pulido Valente no Público de Hoje


Moralizações

Uma obscenidade tradicional da "classe dirigente", principalmente da "classe dirigente" democrática, é fingir que participa nas dificuldades do povo. Hoje, e no caso de Portugal, nas dificuldades da "crise". Ontem, por exemplo, os senhores deputados resolveram reduzir em 5 por cento o ordenado dos políticos, julgando que tornam assim mais tolerável o que se preparam para fazer, ou já fizeram, ao cidadão comum. Não percebem que toda a gente toma isto pelo que é: um acto puro e simples de "relações públicas", não especialmente subtil. A maioria dos portugueses sabe que os políticos ganham muito bem (ou, pelo menos, que não ganham mal) e que um pequeno "sacrifício" de 5 por cento não os vai levar à miséria, nem lhes vai retirar os privilégios (substanciais) de que sempre gozaram.De resto, como foi aprovada, a lei não se aplica aos funcionários de gabinete dos secretários de Estado e dos ministros. Uma aberração porque do chefe de gabinete ao último assessor ou adjunto não há no governo inteiro um único que também não seja político (ou, como se diz, "de confiança política") e uma parte considerável aspira a uma carreira política. Encher o gabinete de militantes do partido é mesmo a maneira mais fácil de criar um embrião de clientela e de pagar "serviços" do passado ou garantir "serviços" no futuro. A redução de 5 por cento toca levemente na bolsa dos políticos, mas prescindir ou prejudicar a corte que o rodeia tocaria no seu poder - e isso eles não quiseram. Os jornais, misteriosamente, chamam à coisa "moralização". De quem ou de quê?De qualquer maneira, essa "moralização" não chegou por enquanto ao deputado Ricardo Rodrigues, vice-presidente da bancada do PS, que alegadamente subtraiu dois gravadores, no fim de uma entrevista à revista Sábado. Perante este episódio, em que só a polícia e os tribunais deviam intervir, a Assembleia da República vacila. A Comissão de Ética ainda não levantou a imunidade parlamentar ao deputado Ricardo Rodrigues, uma decisão que, em princípio, se julgaria automática. E Francisco Assis declarou a história, que, aliás, não nega, "lamentável", acrescentando generosamente que ela "não corresponde a um padrão de comportamento" de Ricardo Rodrigues ou às relações do PS com a imprensa. Estas palavras consolaram de certeza o país, que ficou agora seguro da alta honestidade dos seus representantes.

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